A nova Lei de Licitações e o Sistema de Controle Interno

O que há de novidade na Lei de Licitações?


O projeto da nova lei de licitações e contratos (PL n. 4253/2020) foi aprovado no Senado Federal em 10/12/2020.

O texto aprovado é o substitutivo elaborado pela Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado (PLS) 559/2013, com algumas alterações do relator, Senador Antônio Augusto Anastasia (PSD-MG), que foram aprovadas e incorporadas à versão final, que aguarda consolidação no Senado para ser encaminhada à Presidência da República, onde poderá ser vetada total ou parcialmente.

Certo é que, após anos de tramitação nas duas Casas Legislativas do Congresso Nacional, já temos uma ideia mais concreta sobre como será a Nova Lei de Licitações, que não tarda a entrar em vigor. 

O PL 4253/2020 é, pois, o novo marco legal que substituirá a Lei das Licitações (Lei n. 8.666/1993), a Lei do Pregão (Lei n. 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações (RDC – Lei n. 12.462/2011). 

A Nova Lei de Licitações, a pretexto de trazer inovações significativas no âmbito das contratações públicas, reflete, na maioria de seu texto, a consolidação de diversas regras das leis supracitadas, a positivação de práticas que já se consolidavam no cotidiano de milhares de órgãos e entidades públicas, de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acatados pelos órgãos de controle externo, além de disciplinas veiculadas por atos normativos infralegais de alguns órgãos públicos federais.

Portanto, ela não é algo tão novo e inédito como se esperava.

Contudo, é digno de nota a expressa menção, no texto da Nova Lei de Licitações, dos diversos controles internos que devem ser implantados para que se garanta o cumprimento dos princípios que regem a administração pública e, em última instância, o pleno atendimento aos interesses públicos que informam as compras e contratações públicas.

O novo texto legal realiza a adequada diferenciação entre as atribuições do órgão central do Sistema de Controle Interno (Controladoria Geral), e uma gama de controles internos, que competem aos agentes públicos vinculados às unidades executoras desse mesmo sistema (Secretarias e Departamentos) e que, por expressa previsão legal ou designação da autoridade competente, são os responsáveis pela execução direta das ações previstas na legislação nacional sobre compras públicas.

O espaço conferido no PL 4253/2020 aos controles internos e ao Sistema de Controle Interno leva-nos a vislumbrar uma nova forma de execução das compras e contratações públicas, muito mais condizente com os princípios que regem a Administração Pública.

 

Os novos e velhos princípios de Controle Interno e sua disciplina na nova Lei de Licitações


O art. 5º do PL n. 4253/2020 trouxe, além dos princípios previstos no art. 3º da Lei n. 8.666/1993 e de outros que implicitamente já se aplicavam às licitações e contratos administrativos, o princípio da segregação de funções e o princípio do planejamento.

Esses princípios, além de estarem expressamente mencionados no texto legal, se concretizam em diversas regras de planejamento e de atuação dos agentes públicos envolvidos nas fases do processo licitatório.

Tais princípios sempre foram invocados como retores das funções de controle interno e embora fossem inerentes a qualquer atividade realizada pelos diversos órgãos e entidades da Administração Pública por força das normas constitucionais que regem o Estado, muitas vezes restaram ignorados, sob o argumento de que não existia nenhuma lei a exigir a sua observância.

 

Segregação de funções


O princípio da segregação de funções consiste na separação das funções de autorização, aprovação, execução, controle e contabilização, ou seja, nenhum servidor deve ser responsável pelos passos chave de determinada transação no âmbito da gestão pública.

Para evitar conflitos de interesses, é necessário repartir funções entre os servidores para que não exerçam atividades incompatíveis, como executar e fiscalizar uma mesma atividade. A segregação de funções destina-se a reduzir as oportunidades que permitam a qualquer pessoa estar em posição de perpetrar e de ocultar erros ou fraudes no curso normal das suas funções.

Há muito tempo este princípio é considerado pelos órgãos de controle externo e interno em suas manifestações acerca de licitações e execução contratual das quais citamos, a título de exemplo, as seguintes:

  • Não designar, para compor comissão de licitação, o servidor ocupante de cargo com atuação na fase interna do procedimento licitatório. (Acórdão TCU nº 686/2011 – Plenário)
  • Considera-se falta de segregação de funções, o Chefe do Setor de Licitações e Contratos elaborar o projeto básico e atuar no processo como Pregoeiro. (CGU, RELATÓRIO nº 174805/2005)
  • Considera-se falta de segregação de funções quando o pregoeiro e a equipe de apoio à licitação realizam trabalho de comissão de recebimento dos materiais. (CGU, RELATÓRIO nº 174805/2005)
  • Evitar que responsáveis por comissões de licitações sejam também responsáveis pelas áreas de suprimento envolvidas. (Acórdãos TCU nº 1.449/2007 e nº 2.446/2007)

 

Na Nova Lei de licitações este princípio mereceu destaque quando o legislador deixou bem claro os conceitos de autoridade (agente público dotado de poder de decisão), agente de contratação (pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento da licitação), comissão de contratação (conjunto de agentes públicos indicados pela Administração, em caráter permanente ou especial, com a função de receber, examinar e julgar documentos relativos às licitações e aos procedimentos auxiliares) e fiscal de contrato, figura já prevista na atual Lei de Licitações.

As regras relativas à atuação dos atores no processo de contratação pública devem ser disciplinadas em regulamento, sendo prevista a possibilidade desses atores contarem com o apoio dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno.

O § 1o do art. 7º da Nova Lei de Licitações estabelece como dever categórico da autoridade máxima do órgão ou entidade responsável pela gestão por competências, ao designar os agentes públicos para o desempenho das funções essências à execução da lei, cumprir o “princípio da segregação de funções, vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação”, sendo que tal exigência também se estende aos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno.

 

Planejamento


O planejamento consta há muitos anos em nosso ordenamento jurídico como dever inafastável do administrador público, sendo que podemos destacar sua menção expressa na Lei n. 4.320/1964 e no Decreto-Lei n. 200/1967. Podemos conceituar o Planejamento como o conjunto de medidas a serem adotadas antes da execução de determinada ação. Planejar significa definir necessidades, estabelecer formas de atendê-las, os agentes responsáveis, o prazo para a execução das ações e o resultado que se pretende obter.

Na seara das contratações públicas, os resultados que se pretende obter devem levar em consideração o interesse público a ser alcançado, com o emprego de recursos públicos de maneira eficiente e eficaz. É preciso ter absoluta certeza de onde se pretende chegar e qual o caminho a ser percorrido, já que os interesse envolvidos dizem respeito, sobretudo à garantia do exercício e fruição dos direitos fundamentais por parte dos cidadãos.

Neste contexto, a Nova Lei de Licitações estabelece, algumas ferramentas gerenciais que possibilitam a adequada execução do planejamento das compras públicas, a exemplo do plano de contratações anual (art. 12, VII), que tem o objetivo de “racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias”.

No mesmo sentido, prescreve o art. 18 que a fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual, quando elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação.

Documento essencial para a definição das reais necessidades da Administração é o estudo técnico preliminar, que evidenciará o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação.

Se do ponto de vista prático, nenhuma contratação pública poderia ser bem sucedida sem o seu adequado planejamento, agora não há como os gestores públicos se furtarem da melhor ferramenta de gestão que a ciência da Administração pode lhe ofertar: o planejamento.

 

A importância do Sistema de Controle Interno na nova Lei de Licitações


O PL 4253/2020 conferiu ao Sistema de Controle Interno o papel de destaque que lhe compete, pois não há como se obter os resultados almejados, quando da realização de uma licitação e da execução de um contrato, sem que sejam realizados os controles internos que assegurarão, além do cumprimento das prescrições legais, também as melhores práticas de gestão.

Para tanto, o parágrafo único do art. 11 prescreve a necessidade da alta administração do órgão ou entidade se responsabilizar pela governança das contratações, implementando processos e estruturas, “inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos (do processo licitatório), promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”.

Já o art. 19, IV prevê que os órgãos da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, obras e serviços e de licitações e contratos deverão instituir diversos controles, a saber:

  • instrumentos que permitam, preferencialmente, a centralização dos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços;
  • criar catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras, admitida a adoção do catálogo do Poder Executivo federal por todos os entes federativos;
  • com auxílio dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno, modelos de minutas de editais, de termos de referência, de contratos padronizados e de outros documentos, admitida a adoção das minutas do Poder Executivo federal por todos os entes federativos;
  • instituir sistema informatizado de acompanhamento de obras, inclusive com recursos de imagem e vídeo;

 

Certo ainda que a não utilização dos instrumentos padronizados deverá ser justificada por escrito e devidamente anexada ao respectivo processo licitatório, já que a fuga a um padrão previamente estabelecido, sem justificativa de ordem fática ou técnica plausível, pode implicar em pouca aderência às regras legais, tornando-se um fator de risco para a a eficácia, a efetividade e a probidade da contratação.

Outra comprovação de que a Nova Lei de Licitações estabelece controles internos preventivos é a determinação de instituição obrigatória de práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos, subordinadas ao controle social e sujeitas às seguintes linhas de defesa elencadas no art. 168:

I – primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade;

II – segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade;

III – terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.

 

O art. 168 denota claramente a diferença entre os controles internos próprios de cada órgão, realizados pelas unidades executoras do Sistema de Controle Interno (segunda linha de defesa) e o controle realizado pelo órgão central do mesmo sistema (terceria linha de defesa).

Representa esse dispositivo a positivação de um dos maiores anseios da sociedade brasileira ao consignar, em seu § 1º, que a implementação das práticas a que se refere será de responsabilidade da alta administração do órgão ou entidade e “levará em consideração os custos e os benefícios decorrentes de sua implementação, optando-se pelas medidas que promovam relações íntegras e confiáveis, com segurança jurídica para todos os envolvidos, e que produzam o resultado mais vantajoso para a Administração, com eficiência, eficácia e efetividade nas contratações públicas.”

O § 2º garante ainda aos órgãos de controle (sejam da segunda ou da terceira linha de defesa) acesso irrestrito aos documentos e às informações necessárias à realização dos seus trabalhos, inclusive aos documentos classificados pelo órgão ou entidade nos termos da Lei no 12.527/2011, sigilosos ou não.

Para encerrar com maestria a positivação da atuação do Sistema de Controle interno em contratações públicas, o § 3º estabelece uma forma clara de conduta, na hipótese em que os integrantes de qualquer das linhas de defesa a que se refere o caput do art. 169 se deparem com meras impropriedades formais ou irregularidades capazes de gerar dano à Administração:

  • quando constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis;
  • quando constatarem irregularidade que configure dano à Administração, sem prejuízo das medidas previstas para o saneamento e a não ocorrência posterior de impropriedades formais, adotarão as providências necessárias para apuração das infrações administrativas, observadas a segregação de funções e a necessidade de individualização das condutas, bem como remeterão ao Ministério Público competente cópias dos documentos cabíveis para apuração dos demais ilícitos de sua competência.

A Nova Lei de Licitações prestigia mais uma diretriz de controle interno, ao reconhecer a necessidade da correta definição dos responsáveis pelas dezenas de atribuições atinentes a um processo de contratação pública, tanto sob o aspecto de evitar ou mitigar riscos, quanto pela necessidade de responsabilização justa dos agentes públicos, evitando-se, assim, penalizações de agentes públicos que não atuaram de forma a contribuir para ocorrência de ilegalidades ou danos ao erário.

Desta forma, quando existem instruções normativas e atos regulamentares que detalham todas essas atribuições, torna-se possível a individualização das condutas, propiciando o que se denomina de “accountability”.

Oriunda da língua inglesa, a expressão accountability não encontra tradução exata no Português, mas é utilizada para se referir a “responsabilização”. Em linhas gerais, “accountability encerra a responsabilidade, a obrigação e a responsabilização de quem ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, estando envolvida a possibilidade de ônus, o que seria a pena para o não cumprimento desta diretiva”. (Pinho & Sacramento, 2008, p. 2).

O novo marco das contratações públicas no Brasil reforça, assim, a necessidade de o agente público atuar como responsabilidade, transparência e integridade no intuito de atender o interesse público.

 

Conclusão

 

Acredita-se que o projeto da Nova Lei de Licitações, embora seja aparentemente apenas a consolidação do conteúdo das normas ainda vigentes sobre a matéria, com o detalhamento de rotinas e práticas já adotadas em diversos órgãos e entidades, ao reconhecer a imprescindibilidade de um Sistema de Controle Interno eficaz, terá o condão de introduzir, no cenário das contratações públicas no Brasil, a tão esperada profissionalização da gestão pública.

A utilização obrigatória de ferramentas de planejamento, a segregação de funções e o estabelecimentos de uma série de instrumentos de controle preventivo, poderão criar um ambiente no qual os agentes públicos compreenderão que excelência gerencial não é uma prerrogativa da iniciativa privada, mas uma obrigação e um dever constitucional para quem atua na Administração Pública.

 

Priscila Viana

Advogada especialista em Direito Administrativo e Sistemas de Controles Internos

Priscila Viana

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