Os efeitos da Lei Complementar n. 173/2020 para os servidores públicos.

A pandemia COVID-19 trouxe para o direito brasileiro uma série de normas jurídicas de aplicação temporária. Tais normas, em geral, possuirão vigência enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 06/2020, editado pelo Congresso Nacional. Contudo, algumas delas geram efeitos para além do marco temporal do estado de calamidade pública.

É o caso, por exemplo, de alguns dispositivos da Lei Complementar n. 173, de 27/05/2020, que, dentre outras, instituiu medidas de observância obrigatória, por parte de União, Estados, Distritos Federal e Municípios, em relação aos servidores públicos, isso em decorrência das consequências da calamidade pública decorrente da pandemia COVID-19.

De logo, deve-se alertar que a Lei Complementar n. 173/2020 tem sido objeto de inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (6442, 6447, 6450, dentre outras), todas ainda sem decisão liminar ou de mérito, o que, por si só, já demonstra a complexidade das matérias ali tratadas e a temeridade de qualquer ação governamental que verse sobre os pontos sensíveis dessa nova legislação, neste momento.

Embora não se negue a relevante iniciativa legislativa no sentido de buscar a contenção de gastos com pessoal dos entes públicos, diante do atual contexto fático, a saber, pandemia, sensível redução das receitas públicas e último ano de mandato de gestores municipais, temos que a sua aplicação em desacordo com as regras constitucionais pode levar a situações que propiciem maiores gastos de recursos públicos, haja vista o risco de judicialização de suas regras.


Do âmbito de abrangência das proibições da Lei Complementar n. 173/2020

A primeira questão a ser enfrentada é sobre o alcance do art. 8º da Lei Complementar n. 173/2020 (norma que trata especificamente de uma série de proibições que atingem os servidores públicos) para os Municípios ou Estados que eventualmente não tiveram reconhecido, pela respectiva Assembleia Legislativa Estadual, o estado de calamidade pública. Pergunta-se, pois, se o Decreto Legislativo n. 06/2020, que reconheceu o estado de calamidade pública para a União, também atingiria os demais entes federados.

Este dispositivo menciona textualmente que na hipótese de que trata o art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficarão proibidos, até 31/12/2021, de realizar diversos atos de pessoal.

Da nova redação do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, dada pela mesma Lei Complementar n. 173/2020, consta o §1º e o §2º que assim dispõem:

 

“Art. 65.....

§ 1º Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo, em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos incisos I e II do caput:

§ 2º O disposto no § 1º deste artigo, observados os termos estabelecidos no decreto legislativo que reconhecer o estado de calamidade pública:

I - aplicar-se-á exclusivamente:

a) às unidades da Federação atingidas e localizadas no território em que for reconhecido o estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional e enquanto perdurar o referido estado de calamidade;

(...)

A partir da redação acima, conclui-se que a Lei Complementar n. 173/2020 estende as suas determinações a todo território nacional, em razão de o Decreto Legislativo n. 06/2020, aprovado pelo Congresso Nacional, não ter feito referência expressa a partes específicas do território nacional.

Medidas específicas da Lei Complementar 173/2020 que afetam os servidores públicos

As medidas que afetam os servidores públicos e a dinâmica do serviço público em geral estão no art. 8º da Lei Complementar n. 173/2020, que proíbe a todos os entes federados, até 31 de dezembro de 2021:

I - conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública;

II - criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;

III - alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV - admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares;

V - realizar concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no item anterior;

VI - criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade;

VII - adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7º da Constituição Federal;

VIII - contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.

O art. 8º explicita que algumas proibições (itens, II, IV e VII acima) não se aplicam a medidas de combate à calamidade pública decorrente da pandemia COVID-19, desde que a vigência e os efeitos das medidas aplicadas não ultrapassem a duração do estado de calamidade pública. Tampouco existe a proibição de criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, quando destinados aos profissionais de saúde e assistência social, desde que relacionado a medidas de combate à calamidade pública referida no caput cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

Alerta ainda para o fato de ser proibida a previsão de cláusulas de retroatividade que possam gerar efeitos entre o período de 28/05/2020 (data da entrada em vigor da Lei Complementar n. 173/2020 e 31/12/2021 (termo final de duração das proibições).

Da proibição de contagem de tempo para a aquisição de benefícios diversos que tenham como fato gerador o tempo de serviço e sua inconstitucionalidade

Trataremos, a partir de agora, da medida mais polêmica dessa lei, qual seja, a proibição da contagem do período entre a sua vigência e o dia 31/12/2021, para fins de aquisição do direito a benefícios que tenham como fato gerador o tempo de serviço (como, por exemplo, os quinquênios e as licenças-prêmio), ainda que sem prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e outros fins.

É de se consignar que, para esta subscritora, a referida lei padece de vícios a ensejar sua inconstitucionalidade, notadamente, a violação da autonomia dos Estados, Municípios e Distrito Federal (art. 18 da C.F./88), uma vez que, sem considerar o Poder e o ente federado, a Lei Complementar 173/2020 aplica seus efeitos a todos os servidores públicos do território nacional.

Sobre este último aspecto, temos que se compete a cada um dos entes federados a organização de seu serviço público, bem como estabelecer o regime jurídico de seus servidores e demais particularidades referentes à prestação dos serviços, levando em consideração as suas peculiaridades, observadas, por óbvio, as regras e princípios estabelecidos na Constituição da República de 1988, não há como a União, por meio de lei complementar, estabelecer regra indistinta para milhares de regimes jurídicos instituídos por leis estaduais e municipais.

Nesse sentido, a Constituição da República de 1988 determina no art. 39 que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico e planos de carreiras para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas, o que significa dizer que cada um, nos limites de sua competência legislativa, tem o poder-dever de estabelecer regimes jurídicos e planos de carreira para seus respectivos servidores.

Se os servidores se regem por estatutos e plano de carreiras próprios em nível estadual e municipal, não há como se admitir que a extinção de um direito anteriormente reconhecido por força de lei municipal, distrital ou estadual, editada no limite da competência legislativa do respectivo ente federado, possa ser levada a efeito por lei de ente federado distinto. Não há qualquer norma no texto constitucional que assegure à União competência para legislar sobre regras aplicáveis a servidores públicos de outras esferas, eis que as regras de abrangência nacional, nessa matéria, já constam do próprio texto da Constituição da República de 1988, em especial os seus artigos 37 a 39.

Embora não haja, consoante diversas vezes afirmado pelo Supremo Tribunal Federal, direito adquirido a regime jurídico, tal regra não pode ser estendida para se admitir que outro entre federado interfira nos regimes jurídicos editados por Estados, Distrito Federal e Municípios. Cada um dos entes federados pode alterar, extinguir ou suspender, por lei de sua própria iniciativa, os benefícios decorrentes do tempo de serviço de seus respectivos servidores, mas não a União, de forma indistinta, como se observa pela redação do art. 8º da Lei Complementar 173/2020.

Da inaplicabilidade do art. 8º às promoções e progressões nas carreiras

A proibição da contagem de tempo para fins de aquisição do direito a benefícios que tenham como fato gerador o tempo de serviço não tem a condão de atingir outros institutos da política de pessoal no serviço público, como a promoção ou a progressão na carreira que possuem como um dos requisitos o cumprimento de determinando tempo de efetivo exercício.

Ao contrário das progressões ou promoções, os quinquênios licença-prêmio e similares não levam em consideração o mérito ou a qualidade dos serviços desempenhados pelo servidor, nem tampouco a aquisição de escolaridade superior à exigida para ingresso no cargo, bastando apenas que o servidor compareça ao serviço por determinado tempo, sem nenhuma outra análise adicional.

Quando um benefício, criado por lei, agrega ao tempo de serviço outras condições e requisitos, não há como se entender cabível a suspensão prevista no inciso IX do art. 8º da Lei Complementar n. 73/2020.

Outra tese a encampar a manutenção do reconhecimento do direito a progressões e promoções, até 31/12/2021, é a de que se o direito às progressões e promoções decorre de determinação legal anterior à calamidade pública, não se pode tolhê-lo, sob pena de ofensa ao direito adquirido. Esta é a leitura que se pode fazer do inciso I do art. 8º da Lei Complementar n. 173/2020, ao estabelecer a proibição de concessão de vantagem, aumento ou adequação de remuneração a servidores lato sensu, exceto quando derivado de determinação legal anterior à calamidade pública.

Resta-nos assim evidente que tal norma destina-se mais aos legisladores do que aos gestores públicos, ao proibir novos atos normativos que criem outras vantagens pecuniárias ou aumentem as já existentes, não podendo atingir os benefícios anteriormente instituídos, eis que nenhuma lei prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, consoante positivado no art. 5º, XXXVI da Constituição da República de 1988.

 

Priscila Viana

OAB/MG 77149

 

 

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